Nos deparamos diariamente com uma abundância de imagens de interiores de apartamentos e casas, frequentemente espaços amplos e bem iluminados, pés-direitos generosos e com grandes aberturas. Espaços integrados e semi-abertos, varandas e sacadas que dissimulam os limites entre espaços interiores e exteriores, cozinhas impecáveis e estantes de livros do piso ao teto. Entretanto, por trás das imaculadas paredes brancas destes elegantes espaços domésticos, escondem-se outros ambientes menos cândidos: espaços sem ventilação ou iluminação natural, os quais ainda hoje, são dedicados às pessoas responsáveis por manter a imagem da casa casta, pura e impoluta.
Neste país de muitas contradições, a organização espacial de nossos ambientes domésticos—estejam eles localizados em uma estrutura do século passado, em uma casa dos anos 50 ou em um apartamento cheirando a novo—reflete um legado “colonialista” enraizado em nossa cultura e que insiste em perseverar até os dias de hoje. Proprietários e patrões, ou pelo menos uma boa parte deles, nunca se deteve a refletir sobre as atuais condições dos espaços habitados por seus subordinados e trabalhadores domésticos, não apenas em relação ao espaço físico em si, mas principalmente em termos de salubridade, conforto e qualidade de vida.
São poucas as evidencias históricas que nos permitem compreender mais a fundo as condições de vida dos trabalhadores domésticos. Afinal, os ambientes que vemos representados nas imagens que são publicadas hoje, são os mesmos que sempre preocuparam arquitetos e fotógrafos de arquitetura, profissionais que como os proprietários e patrões, costumam evitar a entrada de serviço. Embora estes espaços apareçam com mais frequências no cinema, em novelas, séries ou documentários de TV, a informação que nos chega é mais sobre a localização destes quartos escuros e escadas de serviço em relação ao resto da casa do que em relação à história e as condições de vida destas pessoas.
Em muitos países da Europa, até o final do século XIX era muito comum construir casas e edifícios com espaços de serviço no subsolo, pavimentos enterrados, mal iluminados e ventilados dedicado aos serviçais, longe da vista dos moradores. Naquela época, empregados domésticos deveriam ser invisíveis, transitar pelos fundos, viver e trabalhar em pequenos aposentos escuros e escondidos. Para isso eles contavam com a sua própria entrada para o seu lado da casa, geralmente por uma pequena porta através do porão, caso fosse uma casa geminada, ou por um acesso independente nos fundos, se fosse uma casa de campo. Além de seus aposentos privados, os criados contavam com uma pequena sala ou espaço comum para comer e realizar suas infinitas tarefas diárias.
Na Franca do século XIX, na maioria dos edifícios residenciais os espaços de serviço, chamados Chambres de Bonne, encontravam-se no sótão abaixo da estrutura do telhado. Nestes ambientes precários e desprovidos de água encanada, os serviçais contavam em média com 7 metros quadrados de espaço privativo—algo que hoje é proibido por lei segundo os atuais códigos de obras em vigor no país. Ainda assim, muitas destas alcovas permanecem ocupadas ainda hoje, sendo alugadas temporariamente para turistas e viajantes de baixo orçamento.
Na África do Sul dos anos 1950, a população em geral enfrentava uma duríssima crise habitacional, situações de pobreza extrema e fome. Neste contexto, muitas dos trabalhadores domésticos se viam forçados a viver em circunstancias desastrosas. Eles residiam em um espaço chamado literalmente de “quartos dos fundos”, uma pequena dependência vinculada aos espaços de serviço, com acesso independente e que geralmente não passava dos 7,5 metros quadrados. Estes quartos eram comumente compostos por quatro paredes, uma laje batida e um telhado—sem forro, água ou eletricidade. A maioria destes quartos dos fundos ficavam bem dissimulados entre árvores e arbustos dos exuberantes jardins das casas de família, permitindo que a sua existência passasse praticamente desapercebida.
Nas regiões suburbanas das grandes cidades, os espaços dedicados aos trabalhadores domésticos costumavam estar localizados ou no porão ou no sótão. As dependências subterrâneas geralmente assumiam um layout em forma de corredor, um espaço longo e comprido onde mal cabia uma cama e um armário—um pequeno banheiro era dividido entre todos os empregados. Quando viviam em cômodos localizados sob a estrutura do telhado, os trabalhadores não tinham permissão para usar o elevador e portanto, deveriam acessar seus quartos a partir de uma escada externa separada. Semelhante aos “quartos dos fundos” das casas de família, aqui também não havia forro e tampouco cortina, fazendo com que a luz sempre fosse um problema, tanto de dia quanto de noite.
Dando um salto para o século XXI, os recentes avanços em termos de regulamentação da profissão e proteção dos direitos dos trabalhadores domésticos parecem ofuscar um clamoroso declínio na qualidade de vida dos mesmos. Ainda hoje e não raramente, empregados domésticos são coagidos a dormir sobre colchões infláveis ou em camas dobráveis, espremidos em áreas de serviço, depósitos escuros ou garagens mal ventiladas—evidenciando não apenas o declínio do direito ao acesso à moradia digna na sociedade contemporânea, mas principalmente, uma completa negação dos direitos humanos mais elementares.
Uma recente pesquisa conduzida pela Organização Humanitária para Economia da Migração (HOME) revelou que até um 59% dos trabalhadores domésticos que vivem e trabalham na casa do patrão não desfrutam da mínima privacidade. Em 20% dos casos, os mesmos são vigiados 24 horas por câmeras até mesmo em suas dependências privativas, sendo que 34% dos entrevistados sequer dispõe de um espaço para guardar seus poucos pertences. Em alguns em países do Extremo Oriente, os trabalhadores domésticos são forçados a dormir em banheiros, armários e até mesmo em varandas. Neste caso, o contrato de trabalho assinado e regulamentado por lei não passa de uma mera fachada. Pouco tempo atrás, a ONG Mission for Migrant Workers (MFMW) chamou a atenção do mundo para as atuais condições de vida dos trabalhadores domésticos em alguns países do Extremo Oriente, destacando a importância de se estabelecer mecanismos mais eficientes de regulamentação e acima de tudo, de fiscalização das atuais condições de vida dos trabalhadores domésticos.
Em alguns países do Oriente Médio a situação não é muito diferente disso. Nos dias de hoje ainda é considerado “normal” o fato de que famílias de renda média e média alta empreguem pelo menos um trabalhador doméstico residente. Estes empregados, quando tiram a sorte grande, recebem um pequeno quarto privativo que não ultrapassa os 10m² (sendo que a maioria deles vive com a metade disso). Comumente, estes cômodos são vinculados diretamente à cozinha e separados por esta dos demais espaços da casa. Em apartamentos que não contam com espaço de dependência, a trabalhadora doméstica recebe apenas um colchão para dormir no chão, seja na cozinha, na sala ou, no melhor dos casos, dividindo o quarto com o filho mais novo (o pronome “a” foi utilizado neste caso porque apenas mulheres podem trabalhar como domésticas no Oriente Médio.).
Embora estejamos cada dia mais conscientes das precárias condições dos trabalhadores domésticos ao redor do mundo, a atual situação não é muito distinta daquela de outrora. Talvez o problema possa estar enraizado na forma como construimos nossas casas, na mentalidade das pessoas ou na compreensão tenaz sobre as normas culturais de uma determinada sociedade. É realmente necessário que um trabalhador doméstico viva em sua casa e esteja a sua disposição 24 horas por dia 7 dias da semana? Mesmo e quando sua casa não esteja preparada para lhe proporcionar uma condição de vida minimamente digna? Ou será que ainda não fomos capazes de nos desprender de uma cultura e legado colonialista? Somos assim tão diferentes de nossos antepassados que puseram o pé neste continente por primeira vez? Estariam os proprietários e patrões dispostos a ceder e abrir mão de um pouco de espaço que possa garantir que seus trabalhadores tenham uma vida minimamente digna ou estamos todos esperando que os arquitetos e arquitetas assumam esta responsabilidade?